Futebol Nacional
Sociedade Anônima do Futebol: como a SAF funciona e de que forma pode salvar os clubes brasileiros

Ronaldo adquiriu a SAF do Cruzeiro (Foto: Gustavo Guimarães Aleixo/Cruzeiro)
A salvação da lavoura. É desta maneira que a Sociedade Anônima do Futebol, ou apenas SAF, é encarada por clubes e torcedores de todo Brasil. Grandes equipes do país, como Cruzeiro, Botafogo e Vasco, inundados por dívidas contraídas ao longo das décadas, já aderiram e foram ‘vendidas’ a investidores nacionais e estrangeiros.
Mas, o que é SAF? Como ela funciona? Ainda que o tema esteja cada vez mais presente entre os que acompanham futebol, nem todos sabem como o que rege a lei que permite que os clubes brasileiros se tornem empresas e sejam geridas como tal.
Para sanar esses e outros questionamentos, o Click Esportivo entrevistou Fernando Ferreira, economista e diretor da Pluri Consultoria e da Bridge Sports Capital, empresas que atuam na intermediação entre clubes e investidores no processo de compra e venda através da SAF.
Especialista nesse tipo de transação, Fernando acredita que nem todo clube precisa virar SAF, mas que é uma saída viável para recuperar a saúde financeira da instituição:
“Alguns clubes não precisam necessariamente virar SAF, mas a grande maioria, sim. Há uma dificuldade grande para se manter operacionalmente saudável e ter capacidade para investir, contratar jogador, pagar melhores salários e ao mesmo tempo quitar as dívidas”, disse.
Confira abaixo a entrevista completa.
Click Esportivo – De maneira simples, o que é a SAF?
A SAF é uma Sociedade Anônima do Futebol, que é um tipo específico jurídico criado para permitir que existam empresas que atuem como clubes de futebol. Empresas que tenham acionistas, investidores, donos, ao contrário do que acontece hoje com as entidades associativas, que é o modelo da maioria dos clubes brasileiros e, portanto, não podem ter donos.
Então, o modelo da SAF permite que o clube possa ter um investidor que aporte dinheiro no clube e com mais capital, mais recursos, ele possa atrair profissionais, ter acesso a tecnologias, outros mercados e fazer investimento que, hoje, os clubes de futebol não têm.
É muito difícil para um clube de futebol conseguir gerar caixa para fazer os investimentos necessários para o futebol, até porque a maior parte deles tem dívida e essa dívida tem um custo muito grande, é uma bola de neve que cresce ao longo do tempo. Então a SAF permite que o clube passe a ser efetivamente um clube-empresa.
Click – Quais são os tipos de SAF?
Os clubes têm algumas maneiras de virar SAF. Vamos imaginar que um clube qualquer seja uma entidade associativa, como a grande maioria dos clubes brasileiros, sem fins lucrativos, inclusive. Você tem duas maneiras de virar SAF: ele pode transformar a entidade associativa em uma SAF. Por exemplo, o clube X passa a ser SAF. Vai ter um dono, investidor e essa é uma das alternativas.
A outra opção é que, a partir do clube X (entidade associativa), cria-se uma SAF deste mesmo clube. Esta SAF é do investidor e a entidade associativa, que é o clube tradicional, passa a ter um percentual dela.
A lei obriga que, quando você cria uma SAF de um clube, pelo menos 10% das ações tem que ser da entidade associativa. Então, ocorre que no final das contas, o modelo mais comum é que existem dois clubes em paralelo: a entidade associativa e a SAF.
Click – Poderia citar um exemplo?
Vamos pegar o exemplo do Vasco. Existe o Vasco da Gama (clube), fundado em 1898 e existe o Vasco da Gama SAF, que pertence à 777 Partners, empresa investidora e que tem 70% das ações da Vasco da Gama SAF.O clube associativo Vasco da Gama é dono de 30% das ações da SAF.
O Vasco da Gama poderia ter se transformado em SAF, só que os clubes preferem não fazer isso porque, se der algum problema na operação, você teria que desfazer essa operação. Então, é muito mais fácil quando você tem uma SAF e uma entidade associativa convivendo juntos. Porque, se der algum problema com a empresa, o clube permanece existindo.
Click – A SAF é a salvação para os clubes?
Depende, mas na maioria dos casos, sim. Há clubes que conseguem resolver a sua questão internamente e há clubes que não conseguem. O Flamengo, por exemplo, era o clube mais endividado do Brasil até 2012 e não precisou virar SAF. Hoje, ele resolveu a sua situação financeira porque é um clube que tem uma capacidade de captação de receita muito grande.
Alguns clubes não precisam necessariamente virar SAF, mas a grande maioria, sim. Há uma dificuldade grande para se manter operacionalmente saudável e ter capacidade para investir, contratar jogador, pagar melhores salários e ao mesmo tempo quitar as dívidas.
Essa avaliação deve ser feita caso a caso. Tem clube que não tem patrimônio, só tem dívida e não tem capacidade de geração de renda. E, considerando o nível médio dos clubes brasileiros, a saída para muitos deles é de fato virar uma SAF, o que não é garantia de que vai dar certo.
Click – De que maneira o clube pode se resguardar de um fracasso da SAF?
A forma correta de se proteger é fazer um excepcional contrato de compra e venda com o investidor. No momento em que a SAF é feita, existe um contrato que tem que prever todas as condições, para o bem e para o mal. Você pode colocar no contrato que, se o clube cair para uma divisão inferior, a diretoria deve ser trocada ou colocar uma garantia de investimento mínimo para poder voltar rapidamente.
Os contratos se aperfeiçoaram bastante no sentido de melhorar a relação e o estabelecimento de regras que vão vigorar a partir do momento que os investidores assumam a SAF.
Click – Quais as diferenças entre os modelos de gestão no Brasil e na Europa
Não há uma grande diferença. Atualmente, clubes sociais existem em grande quantidade somente na Argentina e no Brasil e aqui já vemos muitas transformações, diversos clubes já estão com investidor nas nossas contas aqui já existem 18 clubes no Brasil já já estão com investidores. Tanto lá quanto cá, você tem o modelo associativo e o modelo de SAF ou SAD. O nome não é muito relevante.
Existem mudanças obviamente em cada região você tem regulações específicas. O modelo mais diferente que existe é o alemão, que obriga os clubes sociais a terem pelo menos 50% das ações mais uma, ou seja, os clubes sociais sempre têm o controle da operação.
Na Alemanha, para se ter o controle de um clube, você tem duas opções: ou cria um clube do zero ou investe em um clube já existente por 20 anos e depois você pode se tornar um acionista majoritário,
O modelo de clube-empresa vigora em praticamente todo o mundo. Real Madrid e Barcelona são as exceções realmente relevantes, fora isso, pode olhar praticamente todos os lugares, em quase todas as divisões, o modelo que impera é o empresarial.
Click – Qual o melhor exemplo de SAF que você vê sendo aplicado no Brasil?
É muito cedo ainda para a gente dizer, estão aí há pouco tempo. Mas, até este momento, a gente vê que o Cruzeiro tem sido uma SAF bem sucedida. Muitos dizem ‘Ah mas o torcedor espera muito mais’. É lógico, o torcedor do Cruzeiro é acostumado a conquistas, a estar sempre ‘lá em cima’, só que levaram o clube a mais de R$ 1 bilhão de dívidas
Levaram tudo a uma situação completamente inviável, não tinha dinheiro mais para nada. O Cruzeiro só ia cair mais ao longo do tempo e hoje o Cruzeiro está na série A.
O trabalho do Botafogo também, não precisa nem dizer, né? Sofreu muitas críticas quando foi mal, até mesmo no campeonato carioca deste ano, mas é um trabalho de longo prazo que tem que ser feito olhando para frente. Você traça os objetivos, encontra os instrumentos para alcançar aquele objetivo e tem que seguir o programa. O Botafogo é realmente um exemplo muito bem sucedido
Click – Você enxerga algum caso negativo de SAF no Brasil?
O caso que vem sendo negativo até agora é o do Vasco. A gente bate muito na tecla que a questão não é só dinheiro, ali há um grande uma grande falha em se entender o clube, sua identidade, suas raízes e o seu perfil. Acho que o investidor quis trabalhar de uma maneira muito isolada e não se preparou adequadamente, cometendo erros como a manutenção do CEO da antiga associação.
Quando você assume um clube de 125 anos, que tem uma tradição enorme e uma torcida que vem sofrendo há muito tempo, ela quer mudança, quer ver resultado rápido e a primeira decisão que eles tomam é manter o CEO que estava na antiga administração.
Click – Há possibilidade de haver gestão mista? (entidade associativa e SAF juntos)
Acho pouco provável isso funcionar. Diria que a chance é quase zero absoluto. Em alguns casos, o investidor pode aceitar que uma outra pessoa da diretoria que seja muito relevante e simbólica possa participar da gestão de alguma maneira, como o Petraglia no Athletico Paranaense, ou o Marcelo Paz no Fortaleza.
Mas, na maioria das vezes, o gestor quer efetivamente assumir o clube e acho que gestão compartilhada tende a ser garantia de confusão.
Click – Um clube que virou SAF pode falir?
Aqui é um ponto importante. Se o clube opta por criar a SAF e manter a entidade associativa existindo, se a SAF quebrar, a operação ainda pode voltar para o clube. Mas, se você extingue a entidade e a SAF vai à falência, o clube pode ser extinto.